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O vírus não tem asas, nem os sem-abrigo peste ou quando “gente difícil” é exemplo de cidadania

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Quando José, Paulo e Casimiro dizem que o “vírus não tem asas nem os sem-abrigo peste” (VER AQUI) expressam um sentimento que retrata a acrescente hostilidade por parte da sociedade ‘com-abrigo’ desde que o covid-19 fez a sua aparição silenciosa, uma percepção igualmente partilhada pelo António e pelo Poeta.

Os sem-abrigo queixam-se que as televisões entrevistaram doentes nos hospitais, em lares e instituições “e de nós esqueceram-se. É o primeiro jornalista que vem falar connosco”. Mas a reserva mais intensa que a população sem-abrigo agora sente manifesta-se, por vezes, de forma inesperada, como conta José: “estava sentado com a minha cadela Laika no muro do centro [Centro Acolhimento Temporário] a apanhar um pouco de sol, quando uma patrulha da Polícia me viu e me mandou logo sair dali. Ainda tentei explicar que era aqui que vivia, mas não valeu a pena. Insisti que vivo na casa, mas…Lá tive que passar com a Laika para o lado de dentro do muro”

“Não quis chatices; nenhum de nós quer problemas”, afirma.

O presidente da delegação de Braga da Cruz Vermelha vem em defesa da ‘sua’ população – é assim que designa a comunidade do CAT.

“Até agora todos estão a dar um exemplo espectacular de cidadania a todos nós”, elogia Armando Osório, acrescentando que o funcionamento daquele equipamento social está a “funcionar normalmente, como tem que funcionar”.

“Nestes tempos muito difíceis, estão a acatar bem as decisões de todos os técnicos e da nossa equipa de acção social”, sublinha.

Osório recorda que quando surgiu um caso suspeito de infecção por covid-19, a “toda a população aceitou excelentemente o confinamento obrigatório”.

“Reconheceram o sacrifício que os técnicos fizeram, já que nessa altura tiveram que deixar as suas famílias para se juntar a eles no confinamento”, conta.

O utente que apresentava sintomas em tudo semelhantes aos do novo coronavírus acabou por testar negativo, depois de um primeiro teste inconclusivo.

Se o resultado do teste fosse diferente, em caso de confirmação de infecção, o CAT, explica Armando Osório, tem uma área de isolamento “devidamente equipada, com telefone e, claro, instalações sanitárias”.

“Seguimos e seguiremos intransigentemente todas as normas, todas as regras e todas as recomendações da Direcção-Geral da Saúde”, vinca.

Para os utentes do centro, confinamentos, quarentenas ou deveres cívicos de recolhimento “não são fáceis”.

“Esta população é constituída por gente difícil, daí o meu elogio ao comportamento que manifestam”, diz Armando Osória, compreendendo “o esforço que estão a fazer”.

Tratam-se de pessoas com problemas de integração social, a grande maioria com problemas de alcoolismo e de toxicodepência, e, em alguns casos, com perturbação do foro mental.

“Tudo tem corrido de uma forma tranquila. A maioria cumpre as nossas indicações sem confusões ou grandes tulmutos”, assegura Nuno Gomes, um dos técnicos.

“É claro que existe alguma ansiedade. Nada que qualquer um de nós não tenha”, confirma.

O tempo tem sido ocupado a ver televisão, filmes em DVD’, em jogos, na conversa.

“Se o tempo permitir vai-se até à horta para respirar um pouco sem a máscara de protecção, para exercitar as pernas ou para fumar mais um cigarrito”, relata o técnico “com nome de jogador de futebol e uma boa alma” ao que dizem.

Sobressaltos também já aconteceram. O primeiro foi o caso de suspeita de infecção. Um segundo, apesar da gravidade, teve, contudo, o seu quê de caricato.

Aconteceu assim: um dos utentes saiu, violando as regras, e quando no dia seguinte regressou foi impedido pela equipa técnica de reentrar para proteger os restantes de um possível contagio. Ora, inconformado com a decisão, o “desertor arrependido” chamou a PSP! Enquanto chegam e não chegam os agentes da autoridade, palavra puxa palavra, e acontece a zaragata que culmina com a ida ao hospital do segurança do centro, “mas sem nada de maior”.

“Não entrou. Mas não ficou na rua. Arranjámos onde ele ficar na velha escola defronte do CAT”. É Armando Osório que remata a história, para depois lembrar que o pavilhão polidesportivo da EB 2/3 de Nogueira continua preparado para receber os sem-abrigo da cidade. Ali encontram cama, alimentação e banho.

Osório explica que a “intransigência” é uma das palavras de ordem da casa.

“Com uma população destas características temos que ser intransigentes. Só desta maneira asseguramos o bem-estar e a segurança de todos”, sustenta.

O trabalho da delegação junto dos sem-abrigo não se fica só pelo centro de acolhimento. O apoio médico, a distribuição de metadona aos toxicodependentes e o Projecto Aproximar continuam nas ruas.

Casimiro, José (com a Laika) e Paulo, todos naturais da Braga, ficam pelo CAT até completar seis meses ou até terem alojamento.

“Sem um tecto, ninguém é mandado para a rua. Se um utente ao fim dos seis meses não tiver assegurando um tecto, não sai. Desta casa só sai quem quer e quem tiver alojamento”, assegurara o líder da Cruz Vermelha bracarense quando da apresentação solidária ‘Casinhas’.

Além do ostracismo social e da discriminação a que estão sujeitos, os três têm ainda mais batalhas pela frente, que não só a contra o novo coronavírus: a da saúde, a do emprego, a da auto-estima e da plena reintegração social.

O que não é uma ‘guerra’ fácil – como lhe chamou o Presidente da República- para “gente difícil”.

“É verdade que às vezes somos pessoas difíceis. Mas, no meu pensar, toda a gente é difícil, sabe? Os portugueses, mesmo os mais pobres, recebem bem que é de bem; recebem mal quem é de mal. Percebem logo quem é boa ou má pessoa. É uma característica do povo português”, diz o Poeta, que continua a preferir as ruas, e que pode ser encontrado com o seu “pensar” muito próprio lá para as bandas do Pingo Doce Sta.º Tecla, a uma centena de metros da sede provisória da Cruz Vermelha de Braga.

Ironia, não é?

Esta é a segunda parte da reportagem. A primeira está disponível em https://ovilaverdense.pt/o-virus-nao-tem-asas-nem-os-sem-abrigo-peste/

Legenda: Benjamim, o Poeta

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