O Arcebispo Primaz de Braga, D. José Cordeiro, manifestou-se, esta quinta-feira, numa “Carta ao Povo de Deus”, com o “coração dilacerado” após ter ouvido o testemunho de pessoas que foram vítimas de abuso sexual por membros da Igreja.
“As suas histórias e o seu sofrimento dilaceraram o nosso coração. Conscientes de que o olhar sobre a vítima não pode ser o mesmo que sobre o abusador, ousamos partir da súplica humilde e confiante a Deus para que nos conceda um olhar de compaixão sobre todos: em primeiro lugar as pessoas vítimas, mas também os abusadores e silenciadores, todos os que se escandalizam com a atuação de alguns membros da Igreja, as famílias e a sociedade em geral”, diz o prelado num documento também subscrito pelos bispos auxiliares.
D. José Cordeiro anuncia, a propósito, que a Comissão de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis da Arquidiocese de Braga (CPMAVAB) está disponível para acolher e acompanhar todos os que possam ter sido vítimas de qualquer espécie de abuso em alguma paróquia ou instituição da Igreja”.
“A CPMAVAB, desde a sua criação em 22.10.2019, escutou 28 pessoas que quiseram dar o seu testemunho. Pedimos veementemente a todos os que possam ter conhecimento de situações de abuso que lhe façam chegar o seu testemunho”, assinala, vincando que se sabe que “é doloroso recordar e partilhar estas experiências, mas este é um passo indispensável no processo de cura e apuramento da verdade”.
O sacerdote diz, ainda, que “carregando aos ombros o sofrimento e o escândalo do povo santo que nos foi confiado, nós pastores desta Igreja que peregrina em Braga, queremos reafirmar a todos uma palavra de esperança: «ainda hoje, Jesus Cristo, como bom samaritano, vem ao encontro de todos os homens e mulheres, atribulados no corpo ou no espírito, e derrama sobre as suas feridas o azeite da consolação e o vinho da esperança, para que a noite da dor se abra à luz pascal”.
Por isso – acrescenta – a Arquidiocese vai celebrar uma jornada nacional de oração por todas as pessoas vítimas de abusos de poder, de consciência e sexuais, a realizar no 20 de abril, como já foi anunciado pelo Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa.
RELATÓRIO REFORÇA RESPONSABILIDADE
Na opinião do chefe da igreja católica bracarense, o “Relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa” (14.02.2023) reforça a responsabilidade de cada um de nós. Somos todos chamados ao firme compromisso de garantir que as atividades pastorais se desenvolvam sempre em ambientes sãos e seguros”.
E acrescenta: “Para que isto aconteça, deixemo-nos questionar e iluminar com a luz do Evangelho. Trata-se, portanto, de percorrer juntos o caminho do discernimento pastoral: reconhecendo, interpretando e decidindo”.
O Arcebispo diz, ainda, que importa “reconhecer a centralidade das pessoas que sofrem” e sublinha que tem consciência de que foram, de facto, as vítimas que começaram a fazer ouvir a sua voz, a querer recuperar o tempo perdido por causa de sentimentos de culpa, de vergonha e de raiva, frustração e de escândalo”.
E, prosseguindo, afirma: “O Relatório confirma que perante indícios ou provas de abusos, no passado, houve: desvalorização, encobrimentos ou silenciamentos, ingénuas reparações privadas na ilusão de compensar o dano sofrido pelas vítimas. Reconhecemos que os abusos sexuais não foram tratados como prioridade, arrastando consigo erros, omissões e negligência. Reconhecemos, ainda, que nos últimos dias, houve mensagens confusas e contraditórias e equívocos de comunicação sobre o modo de agir da Igreja perante este flagelo hediondo. Por tudo isso, pedimos perdão”.
INTERPRETAR A CRISE DOS ABUSOS
E, anota, ainda, na carta: “Precisamos de fazer um esforço no sentido de interpretar o momento que estamos a viver, considerando que a atual crise dos abusos é, sem dúvida, uma oportunidade para uma evolução ética da humanidade e também para uma renovação e purificação da Igreja, exigindo que continuemos a fazer tudo o que for possível para que a infância seja valorada como deve e se consolide, a nível ético e jurídico, o respeito pelas crianças”.
E, continuando, declara: “Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização!» (Papa Francisco). Não conseguimos imaginar pior tragédia do que viver situações dramáticas e traumáticas na mais completa solidão, temendo a insuportável repetição dos infames acontecimentos, pois grande parte das vítimas sofre abusos continuados dos abusadores. Nunca seremos capazes de saber o que é ser criança ou adolescente e estar à mercê de pessoas que usam o seu estatuto, o seu poder, as suas falas mansas, supostamente bondosas e porventura encantatórias, para atrair vítimas e as molestar”.
Na missiva, D. José Cordeiro volta a mostrar-se incomodado: “Arrepia pensar nisto, mas é uma realidade tão incontornável que temos de nos focar sobre ela para que não se repita. Na Igreja e suas instituições, não podemos tolerar uma espécie de conspiração silenciosa, pois o silêncio, nestes casos, mata emocionalmente, tanto como os crimes dos próprios culpados”.
CULTURA DE PROTECÇÃO
Em sua opinião, “é hora de decidir e agir, como pede o Papa Francisco, afirmando que «não basta pedir perdão às vítimas». Na sua carta de 2 de fevereiro de 2015, dirigida aos Presidentes das Conferências Episcopais, o Santo Padre afiançou com veemência, que “é necessário continuar a fazer tudo o que for possível para desenraizar da Igreja a chaga dos abusos sexuais contra menores e abrir um caminho de reconciliação e de cura a favor de quantos foram abusados”.