Resumo
Este artigo pretende contribuir para um conhecimento mais sério de Maomé na cultura ocidental, onde vários seguidores da sua fé vivem, mas onde a ignorância sobre os seus preceitos contribui, por vezes, para uma visão puramente negativa. Recorrendo a obras históricas e teológicas das religiões do Livro, tem como principal fundamentação a obra de um teólogo ortodoxo sobre o profeta fundador islâmico, que recorreu a uma pesquisa invulgar sobre Maomé, C. V. Gheorghiu. A sua condição de marginalizado criou-lhe uma grande sensibilidade para compreender a perseguição constante a que Maomé foi sujeito em quase toda a sua vida. A sua tolerância para as outras religiões monoteístas e a sua estratégia político-militar possibilitaram-lhe a conquista rápida da Arábia.
Palavras- Chaves: Maomé; muçulmanos; Georghiu.
Summary
This article aims to contribute to a more serious knowledge of Muhammad in Western culture, where several followers of his faith live, but where ignorance about his precepts sometimes contributes to a purely negative view. Using historical and theological works from the religions of the Book, its main foundation is the work of an orthodox theologian on the Islamic founding prophet, who used unusual research on Muhammad, C. V. Gheorghiu. His marginalized condition created him a great sensitivity to understand the constant persecution to which Muhammad was subjected almost throughout his life. His tolerance for other monotheistic religions and his political-military strategy enabled him to quickly conquer Arabia.
Keywords: Muhammad; Muslims; Georghiu.
Considerações iniciais
Com formação de base em Filosofia e com um enorme interesse por questões teológicas, a leitura dos livros sagrados de religiões e de filosofias de vida (como o budismo, confucionismo, etc) foi empreendida ao longo da minha vida de forma regular, bem como obras de teólogos de várias religiões, e de espiritualidade, de renome. A leitura do Alcorão marcou-me pela sua exortação direta, não narrativa, sobretudo, como no judaísmo-budismo, hinduísmo (Vedas), judaica e/ou interpretativa (Talmud, e outros textos místicos, por exemplo: Jacobs 1976). Há um poder oratório no Alcorão que me fez compreender como pode facilmente levar a conversões rápidas, até por ser um livro muito concreto, aplicável à vida quotidiana das pessoas.
A leitura dos livros gnósticos, quer judaicos, quer cristãos, ajudaram-me a compreender a dificuldade destas religiões monoteístas se desprenderem de tradições idólatras e animistas profundamente arreigadas nas culturas de todo o mundo (Barnstone 2005). O fascínio de Mani pelo cristianismo ajudou-me também a ter uma ideia muito concreta do poder do cristianismo no oriente, que aprofundei com leitura de autores ortodoxos, como o caso de Virgil Gheorghiu, autor judeu por nascimento e romeno, por identidade territorial, ortodoxo considerado herege, por muitos, mas indubitavelmente um homem com uma cultura enorme e multifacetada.
Neste deambular, cerca de vinte anos atrás, li A história de Deus, da teóloga da comunhão anglicana Karen Armstrong, que incide exclusivamente nas 3 religiões monoteístas, por ordem de surgimento na história da humanidade. A leitura da seção dedicada ao judaísmo foi algo penosa, mas não surpreendente, dado ter lido o que tinha sido retirado (e bem, no meu humilde entendimento) da tradição dos textos apócrifos judeus (imensos) aos quais tive acesso em The Other Bible (Barnstone 2005). As várias linhagens do cristianismo não me foram difíceis de compreender, conseguindo, enquadrar algumas delas num contexto histórico, sem o qual nada é passível de compreensão. Mas quando comecei a leitura da seção sobre o islamismo, não conseguia prosseguir na leitura. O Alcorão estava lido e relido, conhecia a divisão básica entre sunismo e xiismo, possuía uma vaga ideia do sufismo (que mais tarde aprofundei com leitura sobre Rumi (Shafal 2015), e ainda assim a minha ignorância era tal que não conseguia seguir o raciocínio da autora.
Investigando num grupo de migração e marginalização, coordenando um grupo informal de integração de migrantes e refugiados, sendo voluntária da UREP (União de Refugiados em Portugal), o meu contato com islâmicos vulgarizou-se, e ouvi, e vejo viver, várias versões do islamismo in loco, desde pacifistas a relatos do apelidado islamismo extremado (por relato dos islâmicos que dele fugiram). Discuti teologia com um professor de sociologia das religiões islâmico (hoje docente nos EUA) e aprendi muitíssimo sobre o entendimento islâmico sobre o cristianismo, que não é igual em todas as linhagens.
Algo me fez sempre, porém, confusão nesta religião da submissão a Deus: ser o seu fundador um combatente que em 10 anos empreendeu a conquista e conversão de praticamente toda a Arábia. Sangue nas mãos existe em todas as religiões, mas não necessariamente na dos seus fundadores, como no caso de Jesus de Nazaré. Como podia haver linhagens pacifistas de uma religião cujo fundador fora um guerreiro? A visão dos muçulmanos que conheço era a de uma má compreensão da minha parte, mas estava perante leituras (minha e deles) altamente enviesadas, obviamente. A leitura da obra mencionada no subtítulo deste artigo esclareceu-me sobre a profunda ignorância na qual vivemos face ao profeta Mohamed, e tentarei articular as principais aprendizagens que obtive nesta obra face a um mundo que vive imerso em discussões estéreis sobre nada que realmente importe no que diz respeito a estas matérias. Perdoar-me-ão aqueles que considerarem este artigo simplista; ele pretende ser escrito para a população com uma cultura média-alta, no ocidente altamente dessacralizado (Girard 1972).
Il n’y a pas de Dieu, bien entendu, pour plácer des obstacles fascinants sous les pas des fidèles, mais il n’ya pas non plus de Loi pour se substituer à Dieu dans ce rôle, comme s’imaginent les fausses sagesses dans notre culture est entichée […]. A ce spectacle, nous sommes tendus de conclure que la pensée critique n’est jamais qu’une entreprise de justification personnelle et qu’il faut renoncer à elle car elle ne fait que dresser les hommes les uns contre les autres […]. Ce en’est pas l’hasard qui loge la poudre dans l’oeil habile à réperer la paille. La perspicacité du critique est réelle. La paille est bien dans l’oeil de ce frère que je condamne. Mais je ne vois pas que ma propre condamination re-produit les traits structurels de l’acte condamnable, sous une forme soulignée par l’impuissance même de cette perspicacité à se retourner contre elle-même. A chaque niveau de cette spirale, le juge s’imagine qu’il échappe au jugement qu’il porte sur les autres (Girard 1978: 602; 603; 587-588).
Um multimigrante multimarginalizado: Constantin Virgil Gheorghiu
Filho de, e ele próprio, sacerdote ortodoxo romeno, casado com mulher judia, este homem esteve preso várias vezes, pelos nazis alemães, por soviéticos e por norte-americanos. Foi sujeito a tortura, fome, etc, tendo a sua aldeia natal e seus habitantes (onde se incluía seu pai) desaparecido numa das famosas limpezas estalinistas. Conheceu vários países, quer por ter sido deportado por questões de guerra, quer por fuga (ou sua tentativa), quer por tentar encontrar um espaço no qual pudesse sentir-se menos estrangeiro de tudo e de todos. Não entrando em detalhes sobre este grande teólogo cristão, pois tal não é o objetivo do artigo, salientamos o seu conhecimento profundo da Arábia, e de vários de seus países e regiões. O cristianismo primitivo começou no médio oriente e espalhou-se rapidamente pela Arábia, não sendo, pois, de admirar essa sua presença (tendo viajado e permanecido em muitos outros países). Aí adquiriu um profundo conhecimento do islamismo, e das múltiplas facetas. Conheceu in loco os lugares das batalhas nas quais o islamismo inicial se foi construindo, tal como o fez em relação a outras personagens históricas como Lutero, por exemplo, além de ter conhecido os locais que Jesus pisou passo a passo, como se pode verificar na bibliografia deste artigo.
Essa sua cultura inscrita no seu corpo frágil trouxe-lhe dissabores teológicos dentro da ortodoxia romena, que aqui não serão obviamente abordadas, tendo, no entanto, ainda em vida sido reconhecido teologicamente pelos seus chefes hierárquicos, ainda que seja olhado de soslaio entre aqueles que deveriam ser todos seus pares. Teologicamente, sintetizando, não é um autor consensual no cristianismo ortodoxo.
Esta sua vivência multifacetada, proscrita, marginalizada, tornou-o numa pessoa com uma enorme capacidade de tentar perceber a verdade dos outros, mesmo que não a aceitasse como sua. Um enorme respeito e uma vontade de compreensão que o levou a fundamentar com um enorme rigor toda a sua pesquisa histórica, neste caso, sobre a vida de Maomé. Trata-se, todavia, de um autor com crenças cristãs profundas e isso reflete-se no acentuar de determinados aspetos, mas quem trabalha no paradigma da complexidade (Morin 1992) sabe que não há investigadores neutros, e desde que o leitor o saiba, também ele é capaz de ser hermeneuta daquilo que lhe é descrito. Daí as fontes serem tão importantes. Na obra em questão são exaustivas, e daí o reconhecimento mundial desta biografia traduzida em várias línguas, nomeadamente em árabe.
Kuhn definiu [paradigma] como uma representação que é partilhada por uma comunidade científica, pressupondo premissas, pré-conceitos e métodos, que condicionam quais as questões mais relevantes na produção de conhecimento e a melhor forma de lhes responder. Quando surgem dificuldades na resolução destas questões é originada uma crise que leva lentamente à criação de um novo paradigma, que se caracteriza por uma mudança descontínua, um progresso por saltos, ou seja, uma revolução científica[…]. Este paradigma vem, assim, assumir a rede rizomática [no sentido deleuziano] das relações e dos fenômenos. Um pensar complexo reconhece a existência de movimento, incertezas, riscos e fatores desconhecidos, em qualquer processo de investigação/intervenção. Distingue-se, portanto, da investigação clássica, que unifica (reduz) o que é múltiplo, quantifica (separa) o que é qualificável, simplifica o que é complexo, para tornar o objeto/sistema de estudo facilmente manipulável e conhecido […].
Investigação em complexidade promove, pelo contrário, interpretações a partir do local e do singular, valoriza a referência à história em qualquer descrição ou explicação, estuda a situação social, econômica e política de um dado contexto, reconhece a impossibilidade de isolar unidades elementares únicas e, como tal, a necessidade de vincular o conhecimento de qualquer elemento ao conhecimento das partes a que pertencem, assumindo-se que o todo nunca é igual à soma das partes […] (Saavedra; Oliveira 2019:513).
Maomé, migrante antes de nascer, profeta fora da sua terra
Começamos com algumas referências de enquadramento histórico da vida geográfica de Maomé pois foram elas que nos permitiram perceber as capacidades invulgares deste personagem que, sem nada nem ninguém, conseguiu fundar uma das religiões com mais impacto em todo o mundo.
Na sua vida, circularmente o seu destino o levou várias vezes à tribo e zona geográfica de seu avô paterno, homem de Meca que fazia parte de um grupo não assinável de homens que procuravam O deus, não totalmente satisfeitos com o culto politeísta e animista reinante em Meca, nem tão pouco com os ensinamentos das tribos judias e cristãs que habitavam na Arábia, embora respeitando todas elas, até por uma questão de sobrevivência física e material; possuía um lugar de prestígio dentro de Meca, não sendo, porém, um dos seus maiores vultos. Nas suas viagens de negócios procurava encontrar esse deus, que seria um, acima de todos os outros, ou talvez único; morreu sem o saber. Um dos seus filhos foi o pai de Maomé que faleceu antes do nascimento do profeta, numa doença que o fez perecer numa viagem de negócios, habitando em Medina.
Sua mãe decidiu ir ter com seu sogro a Meca e aí nasceu a criança, e nela passou grande parte da sua infância, adolescência e primeiros anos de adultez (tenhamos em conta que estas divisões são correntes na linguagem atual, não fazendo grande sentido na cultura e época histórica na qual se situa: Arábia do seculo VII d.e.c). Os seus primeiros anos foram, porém, vividos entre beduínos que acolhiam a sua ama de leite, tendo tido vários irmãos de leite desta ama, que terão um papel importante na sua vida, já como chefe militar e político do Islão. Os beduínos eram nômades, e, portanto, a sua vida consistiu num percorrer a Arábia de fio a pavio, com idas frequentes a Meca, mas mantendo também algum contato com as tribos de seu sangue existentes em Medina, sempre que por lá se encontrava. Tal fazia parte da obrigação da ama, mas mais fundo que isso, essa era (é?) a regra na Arábia: laços de sangue são comunitários, os indivíduos existem nos direitos e deveres daqueles a quem pertencem por sangue. A conversão dos beduínos trouxe aos muçulmanos um número significativo de pessoas, consolidando a sua importância na Arábia.
Le moment donc les Bédouins rencontrent un prophète, ils le suivent et accrochent à sa croyance […]. Mahomet se rend chez ces hommes pour leur offir le Paradis. En échange, il leur demande de devenir musulmans, c’est-à-dire de s’abandonner à la volonté divine’. Si il ne réussit pas à les allécher en leur promettant le Paradis, l’islam sera anéanti. La Mecqe affamera Médine par le blocus [como veremos, neste texto], comme si elle s’assiégeait. Or on ne peut briser le blocus qu’avec des Bédouins. Le Paradis dépeint par le Coran ressemble à une affiche dont les vives couleurs doivent séduire les Bédouins et les convaincre à tout abandonner; plus spécialement, de rénoncer à leur amitié avec la Mecque (Gheorghiu 1999:195).
Meca
Todos nós sabemos que a peregrinação a Meca pelo menos uma vez na vida é um dos princípios instituídos por Maomé aos muçulmanos, mas não, porém, por ser a cidade natal do profeta. A peregrinação a esta cidade é bastante anterior à existência desta religião. Estabelecer uma similitude entre a peregrinação de judeus a Jerusalém e de muçulmanos a Meca constitui uma incorreção. Com efeito, a peregrinação a Meca prende-se desde tempos imemoriáveis à crença de aí estar uma pedra colocada por Abraão, reconhecido pela maioria dos árabes (de qualquer forma espiritual) como o primeiro homem monoteísta. No século VII existia instituído há muito tempo uma hierarquia de limpeza, manutenção física, por exemplo, do espaço envolvendo essa pedra (Caaba), sob responsabilidade sobretudo dos coraixitas, que possuíam, portanto, um papel preponderante, em termos de estatuto, dentro da cidade. Nesse espaço murado se centrava o culto idólatra de toda a Arábia, misturando práticas animistas com culto de antepassados, práticas sacrificiais sagradas ancestrais que as duas primeiras religiões monoteístas nem se atreviam a combater. Este tipo de práticas sagradas sempre foi de índole comunitária (demonstrado pela antropologia), unindo-a. Segundo Girard (1972, 1978), o que os livros sagrados do judaísmo e cristianismo (sobretudo) fazem é denunciar este mecanismo ritualista que sacrifica animais ou pessoas para união das comunidades humanas pré-monoteístas.
C’est l’unité d’une communauté qui s’affirme dans l’acte sacrificiel […].
Nous voyons bien que les rites funéraires comme première ébauche et modèle de toute culture subsequente. Tout s’édifie sur la mort transfigurée, sacralisée et dissimulée. Nous voyons comment, à partir du mécanisme victimaire et des prierès ébauches de sacralisation qui tendent à s’étendre à tous les morts de la communauté […] amenant les hommes à traiter tous leurs cadavres non tant comme des morts que comme des ètres transcendants à la vie et à la mort, tout-puissants sur eux tant pour le mal que pour le bien, soit donc à les consumer rituellement pour absorber leur puissance, soit à les traiter morts comme si ils étaient vivants ou en atente d’une autre vie et leur donner une démeure correspondant à l’idée qu’on se fait d’eux (Girard 1978:38; 117).
Com efeito, judeus e cristãos viviam sobretudo fora de Meca em cidades onde todos se ligavam por sangue, como em toda a Arábia. Várias vezes foram atacados pelos idólatras, como a cidade cristã de Addis-Adaba, onde 20.000 cristãos ortodoxos foram chacinados por se terem recusado à conversão idólatra, por um chefe abissínio. Esta ocorrência, em especial, criara em muitos árabes um respeito pelo cristianismo, nomeadamente nas pessoas que procuravam formas espirituais diferentes, como o já mencionado avô de Maomé, que inclusivamente chegou a visitar monges e eremitas cristãos, sem, porém, se converter. Num dos momentos de grande perseguição dos primeiros muçulmanos em Meca, o profeta orienta a ida de seus discípulos para a Abissínia (actual Etiópia), território então cristão, onde são recebidos em paz (e onde alguns se convertem ao cristianismo, mas poucos), sobretudo após a recitação da 19ª sutra do Alcorão, que enaltece a Virgem Maria e o profeta Jesus; “Le Negus (rei da Abissínia) et l’assistance chrétienne pleurent d’émotion en entendant les arabes vénérer Jésus et la Sainte Vierge” (Gheorghiu 1999:124).
Com a conversão de Maomé via aparição do anjo Gabriel, a sua perseguição começou, de forma gradual. Durante algum tempo, apenas Maomé e sua primeira mulher (durante a vida desta mulher, dez anos mais velha que seu esposo, e com fortuna, Maomé foi monogâmico) eram os únicos muçulmanos em Meca. A conversão à nova religião foi extraordinariamente lenta nos primeiros anos, tendo alguns dos muçulmanos sido convertidos por laços de sangue, como um irmão de leite, e um filho adotivo, de Maomé. Mas houve conversões inesperadas, como a de Omar, conhecido como “o homem de quem o diabo tem medo”; este epíteto advinha de ser uma das poucas pessoas que se atrevia a deambular por um território que se acreditava estar infectado de demônios, sem que nada lhe acontecesse, afirmando-se, inclusive, ter visto e destruído alguns.
A grande missão dos muçulmanos era a eliminação da idolatria; e a sua pregação pública pedia a conversão a um só Deus (Allah), em cumprimento do 1º mandamento do Livro, de acordo com a linhagem de Maomé e de muitos árabes, descendentes, segundo eles, de Ismael, filho de (H)Agar e de Abraão. “Ó adeptos do Livro! Porque discutis acerca de Abraão se a Tora e o Evangelho só foram revelados depois dele? […] Abraão não foi nem judeu nem cristão; foi monoteísta e submisso, pois não estava entre os idólatras” (Alcorão – parte I 1989:64).
Enquanto os muçulmanos se contavam pelos dedos de uma mão, começou por ser ignorado e risível. A principal característica do profeta, no meu entendimento, era a paciência, próprio de alguém que proclamava a submissão total a Allah, de acordo com as instruções recebidas pela entidade celestial Gabriel. Assim, todos os dias, ele pregava junto da zona sagrada, e pelas ruas de Meca. Começou a ser incômodo, sobretudo quando começou a ter seguidores, ainda que poucos. A sua longa perseguição começou por lhe atirarem pedras, dejetos e insultos, sem que ele parasse ou ripostasse. Era um imparável conspurcado, em todos os sentidos. Talvez daí lhe tenha vindo a sua concentração na higiene, que durou toda a vida (o seu último pedido em vida, às portas da morte, foi que lhe lavassem os dentes). O preceito de lavagem de partes básicas do corpo antes das 5 orações diárias (pelo menos) é algo que revolucionou a saúde pública das populações que se convertera ao islamismo. Numa zona geográfica atrita a doenças como a cólera, isso fez toda a diferença.
Os judeus já tinham introduzido hábitos de saúde pública muito importantes como a defumação com ervas de espaços onde tivessem morrido pessoas, o afastamento de pessoas com doenças que sangrassem, nomeadamente as mulheres durante o seu período menstrual (Levítico). Os rabinos não sabiam porquê, mas tinham evidência empírica de que o sangue podia ser uma fonte de contaminação muito grande. Muito provavelmente, os preceitos judeus de não comerem carne de porco nem sangue, adotados por islâmicos) deriva também da experiência empírica de que esse tipo de carne (excepto se muito bem cozinhada, sabemos hoje) era uma fonte de contaminação da população. “Deus proibiu-vos a carne de animal que haja morrido, o sangue, a carne de porco e o que se imolou em nome de outro que não seja Deus” (Alcorão – parte I 1989:155).
Voltando a Maomé e a Meca, a perseguição foi-se acentuando e após ameaças de morte a sua família e a duas tentativas frustradas de seu assassinato, ele é convencido a fugir da cidade após declaração explícita de ser um alvo a abater. Foge com um dos primeiros convertidos pela terra interdita dos diabos, mas é atacado e ferido. Ainda assim, seu companheiro consegue que se escondam e arranja maneira de miraculosamente transportá-lo até Medina com ajuda celestial, como várias vezes é mencionado na biografia deste profeta.
A sua entrada na cidade é proscrita, e todos os muçulmanos acabam por ser expulsos face à escolha da morte (houve alguns que não o fizeram e foram mortos, um deles crucificado). Grande parte da vida de Maomé vai consistir em sobreviver a vários tipos de tentativas de assassinato, ou morte por fome, etc, levada a cabo pelos senhores de Meca de então. Ele, porém, nunca desistiu de fazer da cidade a base dos muçulmanos, tendo-o conseguido passados cerca de 10 anos, como veremos posteriormente. Quando o conseguiu, respeitou os cristãos e os judeus aí residentes, contrariamente aos idólatras.
Meca foi considerada santa pelo império otomano e anexada à Arábia saudita em 1926, sendo hoje proibida a entrada na cidade a não muçulmanos pelos dirigentes sauditas, conhecidos também pela sua perseguição ao cristianismo, para além do seu total posicionamento anti-israelita face ao apoio dado ao povo palestiniano.
É importante salientar que Meca não era, no século VII, uma cidade fértil como Medina; com efeito, Meca situa-se num vale para onde confluem vários trilhos do imenso deserto arábico (onde Abraão, Ismael, Paulo de Tarso, entre outras personagens das 3 religiões do Livro, tiveram que viver: Swindol 2002). Com efeito, se nos livros sagrados destas religiões o deserto pode ser tomado como uma metáfora de períodos conturbados que levam à conversão, a especificação do deserto da Arábia não deixa dúvidas face às personagens mencionadas, e outras (como os padres do deserto, na tradição cristã ortodoxa e anglicana). Só os ingénuos podem pensar que o deserto representa uma fuga do mundo. Os padres cristãos do deserto forneceram à cultura humana da religião do perdão testemunhos preciosos da vida em comunidade.
A brother asked Abbah Poemen, ‘What does it mean to be angry with your brother without a cause? […] He said, ‘If your brother hurts you by his arrogance and you angry with him because of this, that is getting angry without a cause. If he pulls out your right eye and cuts off your right hand and you angry with him because of this, that is getting angry without a cause. But if he cuts you off from God – then you have every right to be angry with him (Williams 2003:31, citando Poemen:118).
Estar na confluência de várias rotas da Arábia fazia, porém, de Meca, um local privilegiado na economia daquela zona geográfica dado que se constituíra como a base do comércio de bens trazidos de todo o lado do médio oriente, e norte de África, pelo menos. Daí o poder comercial ser a base do poder hierárquico da cidade. Meca não produzia bens alimentares de modo a assegurar a sua sobrevivência; daí que a proibição de venda de bens aos muçulmanos era por si só o mesmo que uma sentença de morte, que, no entanto, se tornou ainda mais explícita, como mencionado anteriormente.
Medina
A situação geográfica de Medina era privilegiada na Arábia, por se situar num oásis. A produção de bens alimentares vegetais, tâmaras e cereais (base da alimentação dos árabes, à época), bem como a criação de animais constituíam mais valias que tornavam esta cidade um dos pilares de produção económica. Dos animais era possível extrair leite, carne, peles, etc. O artesanato em peles era muito importante por as noites no deserto serem extraordinariamente frias. A água do oásis permitia também a produção de algodão e linho para as vestes leves tão necessárias durante o dia.
Desta cidade saíam muitos dos bens queram comercializados em Meca, a uma distância de cerca de 400 km, especialmente no mês das trevas, nome atribuídos pelos povos da zona durante o tempo no qual se abstinham de ataques entre si, de modo a que as caravanas pudessem circular, quer para vender, quer para comprar. A Meca convergiam muitos povos, por ser uma cidade perto de Medina,
A capital da produção era então um local de riqueza, estendendo-se devido à população que albergava. Os judeus detinham um papel importante na cidade, numa zona específica, mas não demarcada, como aconteceu mais tarde aquando da expulsão dos judeus pelos reinos europeus, ditos cristãos. O seu acolhimento em territórios árabes do norte de África (sem problemas de maior) garantiu-lhes a sobrevivência; tal é ainda visível em Casablanca, por exemplo, onde o bairro judeu ainda existe.
A fuga de Maomé para Medina fora negociada pois não se desejava guerra entre as cidades; foi conseguida sobretudo pelos laços de sangue que o ligavam à cidade das tâmaras, e também por vir quase sozinho. Com o decorrer do tempo, porém, Medina tornou-se a capital de fuga de praticamente todos os muçulmanos, vindo a constituir-se gradualmente numa comunidade cada vez maior dentro da cidade. Maomé era um trabalhador manual que liderou a construção do primeiro espaço de culto islâmico.
Le Prophète travaille de ses mains à la construction de sa mosquée. Celle-ci sera une des sources d’inspiration pour les mosques postérieures. Elle répose sur trois coudées de fondation, en pierre. Elle de briques, puis de bois de palmier et de ghargad. Elle est couverte de feuilles de palmier, djarid. Cela suffit, car tel était l’abri de Moise, arich. Le niche qui marque la direction, la qibla, est tournée vers Jerusalem. Auprès de la mosquée s’élevent bientôt les maisonnettes des deux femmes [naquele momento] du Prophète, Saudah et Aicha. Mahomet bergera provisoirement de pauvres émigrées qui n’ont pas trouvé place ailleurs […]. Plus tard, cette pièce qui la nuit sert de dortoir pour les pauvres et d’école le jour deviendra la première université du monde (Georghiu 1999:177, citando Essad Bey:71).
A população em geral começou a não apreciar a presença dos muçulmanos, sobretudo pela conversão que incansavelmente tentavam obter; os pobres e os refugiados apreciavam Maomé, bem como muitos escravos, pois os muçulmanos libertavam-nos após a conversão, tal como fizera o seu chefe, algo muito invulgar mesmo nas outras religiões monoteístas (lembro as Cartas de Paulo a Timeu, intercedendo por Timóteo, sendo este último escravo do primeiro, a quem escapara para se converter ao cristianismo, tornando-se o discípulo com maior visibilidade histórica de Paulo de Tarso). Alguns desses migrantes tornaram-se muito importantes no sustento da comunidade muçulmana, dado terem tido um grande sucesso no comércio. Entretanto, toda a família do profeta já se encontrava a viver com ele. Notemos que era do interesse de Meca que os muçulmanos saíssem do seu espaço, dado não terem conseguido matar o cabecilha. Se os primeiros fugiram às escondidas, posteriormente eram convidados a sair.
Houve várias brigas com muçulmanos em Medina, no primeiro tempo de diáspora crescente, também por se verificarem conversões a um ritmo paulatino, mas contínuo. A existência de povos de duas religiões monoteístas no meio de maioria idólatra só era possível pelo respeito pelos laços de sangue e pela lei de talião, a única existente à época na Arábia e cumprida por todos, entre os árabes respeitante à comunidade, e não ao indivíduo, como acima explicado.
A origem da lei de talião perde-se na história, encontrando-se documentada (por descoberta de documento no século XX) na Pérsia, no Código de Amurai (escrito em pedra), datado do século III a.e.c). Possivelmente posteriormente surge escrita na Tora judaica no Livro do Êxodo 21: 24 (a datação deste livro não agrega consenso, mas rondará os 1600 a.e.c.), sendo uma das normativas legais fornecidas por Deus a Moisés para controle da violência entre o povo judaico: “Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”. O cristianismo e figuras espirituais de outros credos esforçaram-se por a relativizar e até por a contradizer. No cristianismo tal é mencionado diretamente no Evangelho segundo S. Mateus, 5:38-39, onde Jesus enuncia a sua famosa sentença de perdão de dar a outra face a quem nos agride. Já no século XX o reformador hinduísta Gandhi alerta que o cumprimento da lei de talião traz consigo um ciclo de vingança ininterrupto que faria com que no mundo não existisse um único ser humano que não fosse cego. O caminho da não violência destes dois mestres levou-os à morte, como sabemos, mas potenciou uma compreensão do perigo da vingança que ainda não foi aceite em alguns países, onde ainda se aplica a mencionada lei. A vida de Maomé demonstra o conhecimento que possuía do perigo strictu sensu desta lei, e dos esforços que fez para evitar o seu cumprimento entre os muçulmanos. “Prescreve-se-vos a lei de talião no homicídio […]” (Alcorão – parte I 1989:42).
Na primeira vez que Maomé foi atacado em Medina, foi defendido por um dos seus, que levou à morte do agressor. Quando restabelecido, a viúva do falecido tornou-se esposa da vítima. Esta será algo que vemos acontecer nos primeiros tempos de expansão desta religião, e que tanta estranheza causa ao mundo ocidental. A poligamia encontra-se justificada no próprio Alcorão, a ser aplicada nomeadamente no tempo da conquista islâmica, e ela será desenvolvida mais tarde.
Ó vós que credes! Não é lícito tomar em herança as mulheres contra sua vontade, nem impedi-las que contraiam novo matrimónio para conservar parte do que lhes destes, a menos que hajam cometido uma torpeza manifesta. Se as odiais, é possível que odieis algo em que Deus põe um grande bem.
Se desejais trocar uma esposa por outra e haveis dado a uma delas um quintal, não tomeis nada dele no momento do divórcio. Colhê-lo-íeis com injustiça e pecado manifesto? (Alcorão– parte I 1989:80).
Ao casar com uma mulher, os filhos que ela tivesse passavam a ser posse do novo marido, e era sua obrigação protegê-los, em todos os sentidos. Era também uma forma de os educar nos preceitos islâmicos. O objectivo, porém, era sobretudo o de pacificação, pelo alargamento dos laços de sangue, entre Maomé e a tribo de sangue da sua nova esposa, por exemplo.
Muitas outras tentativas de assassínio foi ele sujeito nesta cidade, por parte dos seus inimigos de Meca e por conluio de algumas tribos, nomeadamente, dos judeus. Além da pobreza em que viviam os muçulmanos, tinham medo de serem extintos. “Il y a la malédiction lancée sur les musulmans par les juifs, et la prédiction selon laquelle toutes les femmes musulmanes sont vouées à la sterilité. Heuresement, un enfant né. Abdallah-bem-Zubair accouche d’un fils, robuste et plein de santé. Donc, la race des musulmans n’est pas condamnée à la sterilité et à l’extinction! Les prophéties des Juifs étaient mensongères” (Gheorghiu 1999:178, tendo por base Ibn Hicham:150 e seguintes).
Nunca o conseguiram, sobretudo pela visão estratégica política de Maomé, como iremos mencionar; esses atos, para os quais não havia retaliação, mas antes negociação, trouxeram vários aderentes à nova religião.
Um dos momentos mais complicados ocorreu quando Meca sitiou Medina, e com acordo de povos de cidades vizinhas, não permitindo o escoamento de seus produtos, nem a produção de bens alimentícios, por exemplo, nos campos que circundavam a cidade. O preço de levantamento do cerco era a entrega de Maomé e dos muçulmanos, ou a sua morte. O Profeta tenta negociar de várias formas a não necessidade de guerra com os coraixitas, sem efeito. Os muçulmanos tiveram que ir combater pela primeira vez numa desproporção enorme de pessoas e de apoio militar, como a falta de animais. Muçulmanos guerreiros convertidos tomaram o comando com o profeta e a primeira batalha (de Bader) tornou-se famosa para todos os islâmicos. Ela foi vencida com quase não derramamento de sangue islâmico devido à atuação de anjos em pleno combate. Acreditemos ou não, vencer essa batalha é algo inverosímil pelos padrões humanos.
Aux premiers chocs portés par les Qoraichites, les musulmans reculent. Mahomet quite son poste de commandemnet, se mèle aux combatants et arrive aux premiers rangs, Il crie aux fidèles que tous ceux qui mourront aujourd’hui, dans cteet bataille, monteront directement au Paradis. Les paroles du Prophète sont un effet foudroyant […]. La bataille fait rage. Ardente. Avec des alternatives diverses. A cet instant, deux maradeurs, cachés sur la colline et prêts à s’élancer sur le champ de bataille pour piller les cadavres après le combat, voient un nuage qui descend du ciel et touche la terre.
Du nuage descendent des angees armés. Certains sont à cheval; d’autres, à pied. L’un des maradeurs meurt d’émotion, en voyant descendre du ciel cette armée d’anges. Coiffés de casques aux panaches de couleur, les chevaux des anges portent eux aussi des pompons et des aigrettes de toutes les couleurs. Les anges fantassins et des anges cavaliers, à peine decendus des cieux, se rangent en position de combattre aux cotés des musulmans, contre les Qoraichites.
A en croire les témoins, l’armée céleste se composse d’environ cinq mille anges. Toutefois on ne connait pas leur nombre exact; certais anges restent invisibles, afin de pouvoir décapiter les paiens sans être vus (Gheorghiu 1999:212-213).
Conforme foi conseguindo convertidos em Medina, o estatuto de Maomé foi gradualmente sendo alterado. Foi a primeira cidade árabe onde se criou leis que não provinham de sangue, ou seja, leis políticas, tendo por base a religião da submissão, criando por vezes situações de conflito interno dentro dos muçulmanos, inclusive, mas permitindo uma sociedade mais organizada.
Mahomet rédige une constitution pour la ville autonome et indépendante de Médine. Chaque tribu payénne, juive ou musulmane se conduira selon ses lois et ses traditions – autonome et libre – à coté des autres tribus de la cité-état. Cette constitution, commune à tous qui habitent Médine, sera, par la suite, divisée en cinquante-deux articles. Les vingt-cinq premiers ont trait aux musulmans; les vingt-sept autres aux Juifs. La constitution est proclamée dans l’an 1 de l’Hégire, c’est-à dire en 623 […]. Écrite sur des feuilles, comme les livres sacrés et comme les lois revél´´es par Dieu aux hommes, la constitution de Médine est l’oeuvre humainde du Prophète. Elle n’est pas dictée par l’ange Gabriel, comme le Coran. […] On ne mete en commun que les forces militaires lorsqu’il s’agit de défendre la ville. Sont communes aussi toutes les questions d’intêret genéral. L’arbitre – pour l’application de cette constitution est Mahomet […].
Mahomet, bien qu’il invite au islam tous les hommes, en leur montrant que la plus juste voie est l’abandon à Dieu, comme l’a fait Abraham, n’exclut du paradis ni les Juifs ni les chrétiens, ni même ceux qui trouvent Dieu par d’autres voies que les voies oficielles (Georghiu 1999:182).
A organização social regida por lei escrita permitirá que nos últimos anos da sua vida, tenha sido negociada a permissão da peregrinação anual árabe a Meca, interdita aos muçulmanos à época. Chegaram às portas da cidade e não lhes foi permitida a entrada. Negociou então a peregrinação no ano seguinte, e conseguiu-o, tendo a população de Meca, no entanto, nos dois dias estipulados, saído da cidade. No final desses dias, os muçulmanos retornaram a Medina.
Maomé, o estratega político-militar
Ainda que tenha sido aqui exposto resumidamente, a expansão militar deste povo foi lenta no início e muito rápida no final do decénio que levaram a converter (usualmente pelas armas) a Arábia. A nação árabe foi das primeiras do mundo e, como assumido por Maomé, o seu traço de união era a fé comum, e não só o território, que somente para um ignorante o pode considerar uniforme. Esta compreensão ajuda-nos a perceber algumas das questões geopolíticas atuais que envolvem os países dessa zona, que sabem pertencer à grande nação árabe.
Se os judeus se definem também do mesmo modo, o seu território fluído tornou-se mais definido após a 2ª guerra, mas estão rodeados de vizinhos como os quais não sabem estabelecer laços de cordialidade (o que vai contra os preceitos religiosos judeus, aliás). Eis um erro que Maomé sabia que devia tentar evitar a todo o custo. A criação do império islâmico ocorre após a morte do profeta, e referimo-nos apenas à base da fé islâmica que desde o seculo VII se mantem. A conquista desse espaço territorial em 10 anos foi um fenômeno que nos devia fazer pensar.
Não pretendendo ser uma especialista em política militar, se a dimensão guerreira fundacional do Islão (contrária, por exemplo, à do cristianismo que cresceu no martírio durante mais de 300 anos) sempre me surpreendeu, a expansão e rapidez com que se efetuou faz-me pensar que aquele homem tinha efetivamente um dom. Podia não ser profeta, mas foi um grande estrategista militar.
Conforme se avança de conversão em conversão, numa primeira fase, para batalha em batalha, numa outra, a personagem de Maomé vai-se também modificando. A conquista de Meca (onde falece) foi o seu maior trunfo e para a conseguir teve que sacrificar deliberadamente companheiros. Ao analisarmos o seu percurso de chefe militar verificamos a sua tentativa de obter submissão sem ser pela força (armas, fome, etc). Daí a sua usual estratégia de casar com mulheres de rivais mortos pelos fiéis de Allah, ou por estimular o casamento e alianças comerciais entre grupos rivais, selando usualmente pela adoção de crianças e casamento de pessoas de tribos rivais.
Fazia-o por vezes ostensivamente, mas usualmente com descrição e estratégia indireta, com recurso ao ‘terceiro homem’, muitas vezes personificado por ele, e cuja figura ainda hoje prepondera em grande parte de negócios no mundo islâmico, sobretudo naqueles que denotam conflito. Refere-se à solicitação negociadora do conflito por uma terceira pessoa/comunidade (se o conflito é entre comunidades), em quem ambas as partes em desavença confiam. Outra das suas estratégias consistia em utilizar a maledicência e o boato para derrotar aliados contra os muçulmanos. Utilizou-a, por exemplo, num momento especialmente crítico, aquando da aliança aparentemente secreta existente entre os coraixitas de Meca e a comunidade judaica de Medina para captura ou morte de muçulmanos. Os coraixitas garantiram aos Judeus que eles seriam poupados da programada invasão de Medina; em troca, os judeus isolariam os muçulmanos dentro da cidade, onde viviam em paz com os muçulmanos, especialmente após a constituição da cidade-estado, já aqui referida. Maomé, pela calada, fez circular rumores contrários, nunca assumindo que tinha conhecimento deste acordo, não desencadeando nenhum conflito contra os Judeus dentro da cidade.
Questionné par l’exactitude de ces bruits; Mahomet répond: […] ‘Peut-êtreleur avons-nous comande d’agir ainsi’ […].
Ce sont des paroles sibyllines. Elles peuvent être interprétés de toutes les façons. Mais le doute et la méfiance s’emparent des deux camps. La délégation qoraichite qui doit entrer dans Médine la nuit suivante, afin de discuter du deuxième front derrière les musulmans, prend peur.
Ils ont tous peur d’ètre faire prisioniers par les Juifs et livrés à Mahomet. […] Les Juifs qui sont, eux aussi, fort méfiants […] demandent des otages aux Qoraichites, afin d’être surs qu’ils ne seront pas abandonnés, une fois le combat commencé. […] Laissant la question sans réponse, les Qoraichites demandent aux Juifs d’attaquer Mahomet par derrière, le premier samedi qui doit venir. Les Juifs voient dans cette invitation sacrilège que l’intention des Qoraichites de les blesser dans leurs sentiments religieux, pour le livrer ensuite à Mahomet. Seuls les ennemis peuvent demander aux Juifs de se battre au samedi (Georghiu 1999:261-262, com citação de Ibn Hajar, Isabah, nr. 2074).
No entanto, quando os fins justificavam os meios (no seu entender), exigia a submissão devida à vontade de Allah, via seu profeta (sendo Gabriel o Hermes). Essa submissão podia implicar chacina, embora os seus soldados (e mulheres que os acompanhavam devido à força psicológica que lhes davam com os seus gritos e incentivos orais, ajudando fisicamente na batalha se os seus homens tivessem a vida em perigo) estavam proibidos de torturar, saquear totalmente, violar…os usuais horrores colaterais de qualquer guerra. Matar quem mostrava resistência à fé não foi nunca a primeira escolha de Maomé.
Nesta linha de atuação, outra estratégia consistia na tentativa de converter populações mais abertas à fé monoteísta antes de incidir no território que lhe interessava especialmente. Primeiro os vizinhos dos territórios mais importantes. Era uma forma de cerco, evidentemente, mas sem ser pela força. Uma pressão contínua que facilitava imenso a conquista pelas armas se necessário, pois não havia por onde fugir. Daí a importância da conversão dos nômades, difícil, mas muito importante para o alargamento da fé nas tribos e cidades sedentárias.
‘You won’t built a house starting by the roof and working down, you start with the foundation’. They say ‘What does that mean?’. He said, ‘The Foundation is our neighbour whom we must win. The neighboour is where we start […]’ (Williams 2003:25, citando John the Dwarf 39).
Até no seu processo de morre foi o profeta um estratega; tendo tido tempo para decidir quem lhe sucederia, deixou em aberto uma solução que implicaria negociação entre os pretendentes mais evidentes. Não tendo tido grande sucesso, o islamismo continuou a expandir-se mesmo com divisões internas e ocupou na Europa, por exemplo, territórios durante sete séculos (como os reinos que constituem a atual Espanha).
Outras considerações
Estava este artigo quase completo, viajei (de Portugal para um país da Comunidade Europeia) com a obra mencionada no título a um país europeu, de modo a rever citações que poderiam ser mais ajustadas ao que estava já escrito. A escala do voo fez-se num país terceiro, também da Comunidade Europeia (Espaço Schengen).
De regresso a casa, após 10 dias, a Europa encontrava-se em alerta máximo de ataque terrorista. O percurso aéreo era o mesmo que à ida. Passei a alfândega; esperei pela indicação da porta de entrada para o segundo voo enquanto comia; quando ela surgiu, comecei a deslocar-me e surgiu um segundo posto de alfândega. Pensei por quantos postos estariam a passar pessoas que não da Comunidade Europeia. Neste segundo, as máquinas eram mais complexas; depois de ter sido revistada 3 vezes minuciosamente ao nível corporal, segui para ir buscar a bagagem. Estava sob alerta, a minha pequena bagagem, com uma luz vermelha. Mandaram-me abrir a mala, e foi-me dito que o livro acusara explosivos. Confesso ter tido que me controlar para não me rir. Foi chamada a Polícia; vieram dois, e pediram-me que eu pegasse no livro; assim fiz. Nada aconteceu, obviamente, tendo-me depois sido perguntado, pelos polícias, de onde vinha e para onde ia (sem intenções filosóficas, contudo). Respondi, e mandaram-me seguir.
Todos queremos viver em segurança, mas atos deste tipo apenas fomentam a indignação (e bem) no mundo islâmico, e justificam, sem dúvida, a necessidade de artigos como este, no seu propósito.
BIBLIOGRAFIA:
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