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Num dia de Verão no Outono, Esposende recolhe a casa em maré de incertezas

Quando um quase Verão agarra um dia de Outono, está feito o convite a um passeio à beira-mar. Mas nesta tarde sábado, toda a marginal de Esposende está deserta de gente. Sobram gaivotas.

Não fossem dois amigos discutir política (“Não entendes que se o Costa proibir o congresso do PCP, o Jerónimo faz cair o Governo?!”), a maré faria ouvir-se na Igreja Matriz como só acontece nos dias de tormenta.

Não querem entrevistas, porque “bem, para ser sincero não devíamos andar na rua”. Adiante.

Mais adiante, a administrativa Anabela Monteiro fala, pedindo que se ‘tape’ a cara na fotografia onde surge a caminho de casa. Garante que nos oito anos que vive em Esposende “nunca vi uma coisa assim”. “Esposende sem pessoas na rua nem em dias de muita chuva!”.

“Vivemos dias de muitas incertezas –será que as restrições vão dar resultado, será que também serei contagiada?. A incerteza provoca medo”, diz num quase desabafo, olhando a vazia ‘1.º de Dezembro’ vazia, uma das ruas mais conhecidas da cidade.

Acaba de assistir a uma “cena lamentável”, uma altercação no minimercado das redondezas, entre a proprietária e uma cliente aborrecida pela demora no atendimento.

“Esta pandemia está a pôr a todos nós demasiado susceptíveis e irritados. É uma reacção ao medo”, afirma.

Recorre a um “truque” para ganhar ânimo desde o início da pandemia. Usa cores alegres. Hoje veste um casaco amarelo. “Com o sol, nem precisava”. condescende divertida.

Aguarda com “expectativa” o anúncio das medidas para o concelho, que entre 28 de Outubro e 11 de Novembro tinha 597 casos de covid-19 por 100 mil habitantes. Horas depois fica a saber que o seu concelho está no nível ‘muito elevado’. Não pode sair de casa nos dias 1 e 8 de Dezembro entre as 13h00 e as 05h00, e tem que adiar a visita à mãe que vive em Darque, Viana do Castelo, nos próximos domingos.

São muitos dias a vestir cores garridas.

CIDADE FEMININA

No centro da cidade, as ruas são das poucas mulheres que entram em mercearias, dois dedos de conversa, e saem de sacos de compras.

Esposende é uma cidade feminina neste sábado, 21 de Novembro, o segundo de recolher obrigatório a partir das 13 horas. Já no anterior, eram os tacões delas que se faziam ouvir, apressados por que chovia.

Duas vizinhas, saco de compras no chão, conversam à porta, mais além outra atravessa a estrada nacional, outra mais ao fundo, outra, mais velha, dirige-se para o centro paroquial. Um homem, cara de pouco amigos, fuma encostado à parede banhada pelo sol do mercado municipal – “não falo com jornalistas”.

Um carro, um autocarro. Mais gaivotas.

O recepcionista do Suave Mar, o hotel que é há muito um dos ícones de Esposende, ocupa as horas a olhar para nada.

“Este cenário de deserto é atípico num dia com um tempo tão bom”, afirma.

Um surfista confessa que regressa do mar.

“Não sei se podia ir [surfar]. Não conheço as restrições para os praticantes de desportos náuticos”, reconhece. Vai para casa. No dia seguinte, regressa ao mar. “Só se não me deixarem”.

APOCALIPSE

Tomás, Susana, Gonçalo e Bruno

À excepção de Gonçalo, 11 anos, Tomás, de 4, filhos de Susana Guimarães, de 42 anos, e do primo Bruno, de 13, não se veem crianças, muito menos no parque infantil em forma de nau, interditado desde o início da pandemia da covid-19.

Susana está sentada no muro, à entrada da rua das Regateiras. É proprietária da peixaria S. João, casa conhecida em Braga e Porto pelos apreciadores de lampreia.

Diz que a covid-19 lhe “faz muito medo”. Mas também tem receio que o negócio continue a piorar.

“Esta tarde ainda não tive qualquer cliente. Zero. Na tarde do sábado passado foi a mesma coisa. Zero”, garante. “Num sábado ‘normal’, entre aspas, não me faltavam clientes de Braga, de todo o lado, que vêm aqui comprar o meu peixe”, assegura. Mantém as portas abertas porque vive ao lado. Caso contrário, arrumaria as coisas e “ala pra casa que se faz tarde”.

“O agora é isto, que vê aí”, diz, apontando para uma avenida Eng. Eduardo Arantes e Oliveira –a marginal esposendense – despovoada . “Zero carros; zero pessoas”.

“Quero acreditar que as restrições impostas pelo Governo resultem”, afirma com algum desalento.

“Sabe uma coisa? Agora é que percebemos como antes éramos felizes”, remata, dando palavra ao sobrinho Bruno

“Eu também tenho medo, por isso ando sempre com a máscara”, diz o rapaz. “É o Apocalipse”, acrescenta, recuperando palavras da tia. O primo, Gonçalo, gostaria de saber “quando isto vai acabar”. “Acho que ninguém sabe”. A escola de ambos já teve casos de suspeita de infecção. “Foram só suspeitas”, sublinham.

Tomás é o mais falador, quatro anos cheios de boa disposição. “Tenho a máscara para a doença não entrar na minha boca”, começa por dizer. “E para não ‘apegar’ a doença aos meus pais”. Olha para a mãe e acrescenta: “e para não apegar aos meus avós, irmãos, tios e primos”. “Para não ‘apegar’ a doença a toda a gente”, resume.

A mãe, orgulhosa, prepara as crianças para a fotografia. E de repente foi o riso da rapaziada que afogou o mar, ali do outro lado da avenida.

Na foz do Cávado ninguém pesca robalo com isco feito de paciência e dos misteriosos pensamentos de pescador. Também ninguém caminha na praia, passeia o cachorro ou namora. Na paisagem, só se destaca o farol. E mais gaivotas.

“DEUS TENHA PIEDADE!”

D.ª Maria, “quase 90 anos”, do alto da janela vê a sua rua sem vivalma.

“Já viu a beleza que é a minha terra? Num dia bonito como este, isto estava cheio de gente e de carros. Que esta tristeza”, diz da janela.

De dentro, ouve-se Sérgio Conceição na rádio a comentar o 2-0 que o Porto deu ao Fabril. “Por detrás destas varandas há muita gentinha a pelar-se por sair à rua, mas não pode, não é?”. É.

“Que Deus tenha piedade de nós, menino”, lança ao repórter.

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